31 dias de escuridão
Culpa e fatalismo.
O mundo das histórias de terror gira em torno desses dois eixos. Ou um personagem tenta fugir da punição por alguma transgressão, ou ele tenta fugir de uma força inevitável e quase sempre sobrenatural. Em qualquer dos casos, é um mundo de monstros não importa de onde emanem: eles não cabem nas regras ou explicações da sociedade. Estão ali nas fronteiras onde os olhos não alcançam, na moita esperando para engolir tudo.
Não é à toa que são histórias da noite, especialmente do noturno pré-eletricidade, aquele tempo de sombras que produzem mais do que os olhos podem conter. Na sua falta de explicação, aproximam-se de nossa mente mais atávica. Repare que, quanto mais mastigadinho um conto de terror, menos efeito ele produz. Talvez por isso as narrativas do medo nunca tenham saído de moda: ante algo do qual não se pode escapar, o ser humano toma pé da sua real medida no cosmos, passa a ser menos duro consigo mesmo — ou anota mentalmente tudo o que deve fazer para escapar da maldita criatura que quer matá-lo.
Esta é outra característica das histórias de terror: a repetição de certos padrões. No cinema, eles formam subgêneros, pequenos bolsões num pântano fétido. Aqui, os seres indestrutíveis ou até demasiado humanos que vivem para matar; ali, os vírus de vários tamanhos que infectam e deformam; acolá, os fantasmas que insistem em jogar os seus e os nossos traumas na nossa cara; rondando mais para lá, as coisas que apavoram porque estão além de qualquer entendimento; e assim por diante, em processos autofágicos e consaguíneos.
Apesar desse potencial infinito, o tempo não é. E este texto, coitado, tem só 31 dias para apresentar algumas dessas histórias, aquelas contadas no cinema. Pela escolha arbitrária de listas, serão 31 filmes para 31 noites, uma variação daquele musical das noivas para os irmãos. Para tornar as coisas mais interessantes, deixarei de fora os medalhões. Só aqui e ali, alguns clássicos empoeirados ou favoritos pessoais serão incluídos. Tentei trazer de tudo, do nojo ao chique, do ocidente ao oriente, do norte ao sul, do preto e branco às cores.
“Eu acho que as pessoas são atraídas pelas histórias de terror quando a vida está dura”, disse o escritor Stephen King. Para ele, o chamariz seria a catarse já que os problemas dos personagens “são muito piores que meus problemas”. Assim, quando a história termina, o leitor ou espectador pode ir para a cama e dormir como um bebê.
“Pelo menos, na teoria”, ele conclui.
Então, bons sonhos.
1º de outubro
O Mensageiro do Último Dia (The Empty Man, 2020)
(Disponível na Star+)
A história é contada em 3 partes. A primeira, na década de 90, segue dois casais em viagem pelo Butão, que encontram a carcaça do Homem Vazio do título original num templo esquecido. A segunda, nos dias de hoje, acompanha um ex-policial (James Badge Dale) que tenta desvendar o mistério do desaparecimento da filha da vizinha e da morte dos amigos dela. O último ato é a culminação das investigações dentro de um culto que venera o dito cujo do Butão.
Mensageiro ia ser lançado bem no momento da aquisição da Fox pela Disney. Acabou num limbo do qual só se recuperou com o boca-a-boca no lançamento em vídeo e streaming. É a estreia do produtor e roteirista David Prior em longas, o que dá para perceber por certas escolhas de encenação. No entanto, ele compensa isso com uma atmosfera sinistra e a bela fotografia de Anastas Michos. Embora o filme se baseie na série de graphic novels escrita por Cullen Bunn, ele conta uma história diferente, com sua própria mitologia mas fiel ao espírito de horror cósmico dos quadrinhos.
Quem viu filmes de detetives resolvendo mistérios sobrenaturais vai adivinhar a surpresa final com folga. Ainda assim, o desfecho faz um comentário interessante sobre religiões e o poder das narrativas.
2 de outubro
O Chalé do Lobo (Vici Bouda, 1987)
Onze adolescentes recebem um misterioso convite para participar de uma oficina de esqui numa estação isolada nas montanhas checas durante o inverno. Lá, os instrutores, que não são quem aparentam, insistem que o grupo deveria ter apenas dez alunos e que eles devem escolher quem eliminar, isto é matar.
A diretora Vera Chytilová, um dos expoentes do Cinema Novo Checo, costumava filmar na chave do surrealismo. Era só questão de tempo para que tentasse a mão num filme de gênero. Aqui, ela aproveita ao máximo o cenário ermo, a neve monocromática, e a luz lúgubre para realçar os absurdos e incongruências. Apesar de ter seus sustos, O Chalé do Lobo funciona na base do desconforto contínuo para o espectador. O terror e o humor não raro vêm do mesmo lugar, compondo a alegoria de uma sociedade no fim da Guerra Fria, representada pelos estudantes, que não consegue se unir para reagir aos instrutores.
Complementando o absurdismo na tela, O Chalé do Lobo ficou conhecido por adolescentes e crianças da Europa Oriental entre as décadas de 80 e 90 por ser exibido na televisão aos fins-de-semana no horário do desenho animado.
3 de outubro
O Que Ficou para Trás (His House, 2020)
(Disponível na Netflix)
Bol (Sopé Dirisù) e Rial (Wunmi Mosaku) conseguem escapar da guerra no Sudão do Sul para a Inglaterra. Enquanto esperam pela avaliação de seu pedido de asilo numa casa caindo aos pedaços, são atormentados por um espírito maligno que os seguiu desde sua terra natal.
Em seu primeiro longa, Remi Weekes é fiel à Lei de Stephen King: constrói um drama real envolvente, de onde vai brotando o sobrenatural a conta-gotas. É a burocracia — eles precisam aparentar estar bem para que sejam considerados assimiláveis — que torna a situação mais desesperadora. Mas Bol e Rial, cidadãos de lugar nenhum, estão longe de ser tábulas rasas, e o que parece uma história de presas inocentes de uma maldição ancestral é complicado pela culpa: a tragédia de pessoas boas fazendo coisas horríveis.
A direção de arte é meio caminho andado num filme desses. Thalia Ecclestone e Matt Fraser, junto à designer de produção Jacqueline Abrahams (O Lagosta), têm a dupla tarefa de conjurar a atmosfera depressiva de um conjunto habitacional britânico e transformar um casebre nu em casa mal-assombrada. O resto fica a cargo do casal central. Dirisù está bem como um homem conduzido à loucura por uma situação impossível, mas é Mosaku (Loki) quem brilha exibindo a alienação de uma mulher presa no passado e no presente ao mesmo tempo.
4 de outubro
O Clube dos Canibais (2017)
(Disponível na Globoplay/Telecine)
Otávio (Tavinho Teixeira, dono de uma leve semelhança física com o Ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira), o dono de uma empresa de segurança privada, e Gilda (Ana Luiza Rios), sua esposa, gostam de comer os empregados de várias formas. Além disso, Otávio faz parte do exclusivo clube-título, que promove eventos de circo e carne (humana) para deleite de seus membros. Quando Gilda descobre um segredo do líder do grupo, o deputado Borges (Pedro Domingues), ela e o marido ficam preocupados. Imagine se o pessoal da Boca do Lixo tivesse um orçamento decente e resolvesse fazer um filme de terror — no Ceará — e o resultado seria este horror cômico com muito sexo, sêmen, e sangue. Não é de bom gosto nem para todos os gostos, até porque o personagem mais agradável só vai aparecer lá no meio do filme.
Apesar de passar longe do lirismo de Inferninho (2018) e O Estranho Caso de Ezequiel (2016), Clube dos Canibais possui o humor idiossincrático e o olho para o suspense de Guto Parente, que aproveita o inusitado formato de tela larga ao máximo.
No terror, ao contrário do drama convencional, a alegoria mais óbvia não torna a narrativa automaticamente ridícula. Basta que o diretor tenha a convicção das suas ideias. Em Clube dos Canibais, Parente vai até o fim, apresentando uma elite depravada que só pensa em ser… servida. Produzido em 2017, parecia prenunciar o que estava por vir.
5 de outubro
Vampiros de Almas (Invasion of the Body Snatchers, 1956)
Invasores de Corpos (Invasion of the Body Snatchers, 1978)
Na pequena Santa Mira, o Dr. Miles Bennell (Kevin McCarthy) nota um repentino surto de Síndrome de Capgras — em que as pessoas passam a achar que seus entes queridos foram substituídos por impostores. Rapidinho ele vai descobrir que seus pacientes estão perfeitamente sãos.
O romance de ficção científica de Jack Finney (Body Snatchers), uma parábola sobre comportamento de manada e conformismo, foi filmado quatro vezes, incluindo uma versão de Abel Ferrara e outra estrelada por Nicole Kidman, mas só a adaptação de Philip Kaufman de 1978, transportada para San Francisco e estrelada por Donald Sutherland, iguala-se ao original de 1956. Nos dois filmes, os efeitos são o de menos: os calafrios vêm da fotografia em sombras e do mero close-up de um ator.
No filme de 56, o roteirista Daniel Mainwaring (Fuga do Passado) e o diretor Don Siegel (Dirty Harry) mudaram o final feliz do romance numa conclusão desesperadora. O estúdio Allied Artists se assustou, pediu que rodassem um prólogo e um epílogo que confortassem um pouco o espectador. Livres desses pudores, Kaufman e o roteirista W.D. Richter (Brubaker) honraram a visão de Siegel. E mesmo que você tenha assistido ao original, Invasores de Corpos guarda uma surpresa final.
O clima paranoico do original podia ser interpretado tanto como uma crítica à caça às bruxas anticomunista nos EUA (Mainwaring ajudou roteiristas na lista negra servindo de fachada em créditos de filmes) como um endosso a ela. O filme de 78 vinha das cicatrizes do Vietnã e de Watergate. O medo de não conhecer aqueles que nos cercam, porém, é universal e atemporal.
6 de outubro
Creepy (Kurîpî: Itsuwari no rinjin, 2016)
Takakura (Hidetoshi Nashijima, de Drive My Car), agora um professor de psicologia criminal, recebe a visita de um ex-colega do seu tempo de polícia com um pedido de ajuda para desvendar um caso de desaparecimento seis anos sem solução. Enquanto isso, Yasuko (Yuko Takeuchi), sua esposa, arruma a nova casa e tenta fazer amizade com os vizinhos. Logo, essas duas histórias vão se cruzar.
Há uma razão para eu preferir o poster ao trailer do filme: além de entregar um elemento-chave, a montagem vende o que Creepy não é — talvez a pior campanha publicitária desde A Vila, do Shyamalan. O diretor Kiyoshi Kurosawa (sem parentesco com Akira) é um mestre da atmosfera seja qual for o gênero (Pulso, A Mulher de Um Espião). Em Creepy, ele aplica extremo apuro formal às imagens; nada na tela é desperdiçado. Você se sentirá tentado a voltar certas sequências para descobrir detalhes antes ignorados. A distância entre os personagens em cena, por exemplo, fornece um comentário sobre limites numa sociedade com rígidos códigos de interação.
O filme é tanto um mistério policial quanto um terror sobrenatural e um estudo de personagens. Kurosawa honra todos os gêneros montando seu quebra-cabeça sem pressa. Essa aparente lentidão é enganadora. Algumas das partes mais chocantes vêm de falas inusitadas e brutais durante situações corriqueiras. Contribuem mais ainda para construir o pesadelo algumas atuações expressionistas, que remetem a O Gabinete do Dr. Caligari, e o rosto de mangá do excelente Teruyuki Kagawa. Todos esses elementos convergem para um crescendo ininterrupto de tensão, que atinge níveis insalubres no terço final.
7 de outubro
Cuidado com Quem Chama (Host, 2020)
(Disponível na Netflix)
Para matar o tédio da quarentena durante a pandemia de covid-19 no Reino Unido, seis amigos contratam uma médium para conduzir uma sessão espírita via Zoom. Como sói acontecer, regras serão quebradas e um coisa-ruim virá assombrá-los.
Quando menos se espera, o subgênero do found footage (imagens de vídeo encontradas depois dos eventos retratados) ressuscita com algo a contar — mais ou menos como o faroeste. Filtros, congelamento de imagem, ecos e luz precária: o diretor Rob Savage (Strings) usa as limitações e recursos do Zoom para ampliar os sustos. E eles vêm aos borbotões neste média-metragem (meros 57 minutos) despretensioso, que não estica a premissa além do que deve.
Excelente desenho de som de Calum Sample no melhor filme feito no calor da pandemia. O pavor na tela funciona tanto como catarse quanto como espelho da luta contra um inimigo invisível, o vírus antropomorfizado num demônio pronto a fazer o mal. Para assistir só na madrugada, de luzes apagadas e com o computador no colo.
8 de setembro
O Chicote e o Corpo (La Frusta e il Corpo, 1963)
(Disponível na Belas Artes À la Carte)
Kurt Menliff (Christopher Lee, quem mais?) retorna ao castelo da família depois de ter seduzido e abandonado a filha da criada (que se matou), ter largado a prometida e perdido o direito à herança. Ele quer tudo que é seu de volta e ninguém está feliz com isso.
Castelo! Sadomasoquismo! Passagens secretas! Heroínas atormentadas! Assassinatos! Fantasmas vingativos! Paranoia! Necrofilia! Vento encanado! Se você tem curiosidade de saber o que é uma história gótica raiz mas não quer ler O Monge, O Castelo de Otranto e afins, este é o filme. Adicione uma marca registrada de Mario Bava, as cores berrantes — especialmente azul, vermelho, e verde — para dar um ar lisérgico à coisa toda. Algumas imagens são pinturas inesquecíveis, como Nevenka (Daliah Lavi) deitada nas sombras, seus cabelos confundindo-se com a escuridão.
Entre as obras da primeira fase do mestre italiano, esta produção franco-italiana é das melhores, até porque a história faz todo o sentido e o roteiro mantém certa ambiguidade quanto ao sobrenatural até o fim. Cortes inteligentes, até arrojados de Renato Cinquini, e tema ultrarromântico de Carlo Rustichelli. Não estranhe se nenhum desses nomes aparece nos créditos. Era praxe na Itália vender nomes americanos como sinônimo de qualidade hollywoodiana. Quando o produtor pediu a Bava que inventasse um bom e velho nome em inglês para si, o diretor levou a coisa ao pé da letra e se batizou John M. Old.
Um dos filmes preferidos de Christopher Lee, que depois lamentou não ter dublado a própria voz em italiano. Durante anos, planejou voltar a filmar com Bava. Até que viu Banho de Sangue (1971), o giallo (com efeitos de maquiagem de Carlo Rambaldi) da segunda fase da carreira do diretor. Chocado, desistiu da ideia.
9 de outubro
Saloum (2021)
No calor do golpe de estado na Guiné-Bissau em 2003, um grupo de mercenários (Yann Gael, Roger Sallah, e Mentor Ba) executa sua missão de levar um chefe do tráfico de drogas mexicano e milhões em ouro para a capital do Senegal, Dakar. Um suspeito vazamento no tanque os força a pousar na região do delta do rio Salum. Enquanto tentam conseguir combustível para o avião, hospedam-se numa pousada onde antigas contas serão acertadas e um mal mais antigo ainda vai cercá-los.
Jean-Luc Herbulot faz um híbrido de gêneros que começa como um western (ou southern, segundo os créditos) mas muda radicalmente lá pela metade, no melhor estilo Audição de Takashi Miike. Assim como o filme, o roteiro (co-escrito pelo diretor e pela produtora Pamela Diop) é um exercício em ambiguidade. Nenhum dos personagens principais é o que parece inicialmente, muito menos o plácido Delta do Saloum. Os diálogos ágeis estabelecem a mitologia desta produção senegalesa da forma mais simples possível, sem atrapalhar o trabalho das imagens. Um elenco carismático e a música eletrizante de Reksider fazem o resto.
Saloum (que coincidentemente é um homófono de saloon, o bar do Velho Oeste) está menos preocupado em desconstruir clichês do que em brincar com eles. E Herbulot sai desse malabarismo de diferentes gêneros com uma obra enérgica. Não é à toa que o filme conquistou plateias em Toronto e na Mostra de São Paulo, além de prêmio no Fantastic Fest do Texas. Das águas do Salum ninguém escapa.
10 de outubro
A Sociedade dos Amigos do Diabo (Society, 1989)
Spoiler: apesar do título em português, o diabo não tem nada a ver com a história.
Como as pornochanchadas brasileiras da década de 1970, o horror norte-americano da década de 80 era bem mais ousado tematicamente do que se costuma lembrar. A estreia de Brian Yuzna na direção, após produzir Re-Animator (1985), está aí como prova.
Embora Bill Whitney (Billy Warlock) leve uma vida perfeita numa mansão em Beverly Hills, vive incomodado com sua família sem saber por quê. Um dia, recebe do ex-namorado da irmã uma fita cassete com o que parece ser a gravação de uma orgia assassina envolvendo seus pais. Porém, quando vai mostrar a gravação ao seu terapeuta, a fita foi adulterada. E o ex-namorado da irmã morre num acidente estranho. Mais estranho ainda é o que Billy descobre depois.
Fracasso nos EUA inicialmente (estreou somente em 1992), cultuado na Europa no seu lançamento, Society é o filme mais original da safra década de 80. Para essa sátira social surrealista, o roteirista Zeph E. Daniel (sob o pseudônimo Woody Keith) inspirou-se na própria família e nos amigos de Beverly Hills. Mas foi o diretor Brian Yuzna quem injetou o humor mordaz e a inesquecível orgia climática, inspirada em pinturas de Salvador Dalí, que coloca sob nova perspectiva a ideia de rico comendo pobre. A montagem às vezes pode ser tão inepta quanto a de Bohemian Rhapsody, mas Yuzna e sua equipe compensam esses problemas de primeira viagem com brio.
Apesar de ainda ser um horror atual, Society é daqueles filmes que merece a frase “jamais seria feito hoje”. Não por causa do seu conteúdo, mas sim pelos magníficos efeitos práticos de Screaming Mad George (Os Aventureiros do Bairro Proibido, Predador, A Noiva do Re-Animator). Hoje quase tudo seria produzido em computação gráfica, apagando a qualidade tátil que torna o horror corporal final repelente.
11 de outubro
História do Oculto (Historia de lo Oculto, 2020)
(Disponível na Netflix)
É 1987 numa Argentina alternativa. No lugar de Raúl Alfonsin, o presidente é um certo Dr. Belasco, e as Ilhas Malvinas aparentemente continuam sob controle do país. O programa de jornalismo investigativo 60 Minutos para a Meia-Noite vai ao ar pela última vez prometendo convidados e informações que podem derrubar o presidente. Enquanto isso, a equipe de produção do programa corre contra o tempo para juntar as últimas peças do quebra-cabeça: o que faz a sinistra corporação Kingdom? Qual a exata relação do fundador da Kingdom, Marcato (Germán Baudino), com o presidente? O que ele quer em troca de suas revelações? O que tudo isso tem a ver com o assassinato de um indigente ocorrido um ano antes?
História do Oculto mistura filmes de paranoia e investigação estilo Todos os Homens do Presidente com ocultismo, aproveitado ao máximo o pequeno orçamento. A quantidade de diálogos exige atenção embora o filme confie o suficiente na inteligência do espectador para não se incomodar em responder todas as suas perguntas. É salvo do ranço teatral graças aos eventos paralelos em tempo real (com exceção do prólogo).
No seu longa de estreia, o argentino Cristian Ponce optou por filmar (quase) tudo num preto-e-branco granular que realça as sombras ameaçadoras. Quando o vermelho aparece, provoca uma ruptura sufocante que evoca os murais Seagram de Rothko. O formato de tela standard dos programas de TV antigos (1:3) ajuda no ar de autenticidade do período, brincando com a ideia de um passado roubado. No entanto, quem rouba mesmo o show é Héctor Ostrofsky. O seu Alfredo, o jornalista da velha guarda que apresenta o 60 Minutos, pode até ficar desnorteado com os bizarros acontecimentos que vão tomando conta de seu programa, mas não perde a fleuma jamais.
12 de outubro
Eles (Ils, 2006)
O casal francês Clémentine (Olivia Bonamy e Lucas (Michaël Cohen) vive numa casa isolada nos arredores de Bucareste, Romênia. Uma noite são acordados por um telefone insistente, a TV na sala aparentemente ligou sozinha. Logo, não haverá mais telefone nem mesmo um carro; somente estranhos encapuzados atormentando-os noite adentro.
O filme de David Moreau e Xavier Palud inaugurou o subgênero “vítimas isoladas no campo sendo perseguidas por estranhos sem qualquer explicação” (a refilmagem Os Estranhos na HBO Max, e Hush: A Morte Ouve na Netflix são alguns exemplos). Ainda é o melhor da espécie. Não há um segundo de gordura nos 77 minutos dedicados ao medo humano mais básico.
As imagens em digital de primeira geração, vistas hoje em telas de alta definição, criam um efeito de proximidade maior com o espectador; tudo parece mais vívido, imediato. Tanto melhor para a campanha publicitária original, que alardeava ser tudo baseado em fatos reais. Foi mesmo, e os eventos ocorreram na mesma Romênia onde o filme foi rodado. O final poderia ter saído da mente de Michael Haneke (Funny Games foi de 1997 e A Fita Branca veio em 2009).
13 de outubro
O Babadook (The Babadook, 2013)
Amelia (Essie Davis) equilibra o trabalho como cuidadora numa casa de repouso com a vida de mãe. Seu filho de sete anos, Sam (Noah Wiseman), desenvolveu fixação por monstros, o que causa problemas em todo lugar. Adicione duas dores: uma de dente, e a outra, jamais extinta, pela perda do marido num acidente de carro quando ele a levava para o parto no hospital — enfim, Amelia está a um passo do colapso nervoso. Uma noite, seu filho descobre um livro de histórias sobre um bicho-papão chamado Babadook. As últimas páginas estão vazias, mas parece que há mais alguém na casa.
A cineasta australiana Jennifer Kent estreia nos longas com um roteiro desenvolvido a partir de um curta que fizera em 2005, Monster. Criou um dos melhores filmes sobre maternidade do cinema. Sua personagem exala exaustão e emoções conflitantes, do amor à culpa. Daí que fica a cargo do espectador decidir se o Babadook sentiu cheiro de carniça ou se ele foi uma manifestação da psiquê de Amelia. O final em tom de fábula perversa não facilita essa resposta.
O desenho da criatura e os efeitos visuais remetem aos elementos fantásticos do cinema mudo, influência que aparece numa TV que exibe curtas de Georges Méliès com algumas alterações pertinentes. O desenho de som de Frank Lipson torna tudo ainda mais assustador. Porém, a âncora emocional dessa pequena joia é o tour de force de Davis e Wiseman como mãe e filho.
14 de outubro
O Lamento (Gokseong, 2016)
A cidadezinha do título original é assolada por uma série de assassinatos sem explicação, geralmente cometidos por familiares das vítimas. Os habitantes suspeitam das maquinações de um forasteiro japonês (Jun Kunimura) morando nas montanhas. Enquanto os crimes se alastram feito epidemia, Jong-boo (Kwak Do-won), um policial bonachão encarregado dos casos, vê sua filha acometida de estranha doença.
Na-hong Jin retorna à direção seis anos após o aclamado policial Mar Sangrento para contar uma história de possessão e exorcismo inspirada em tradições católicas, coreanas, e nepalesas. O que mais impressiona nesse terror sul-coreano é o absoluto controle tonal do diretor, que injeta doses de humor inesperadas sem jamais fazer a atmosfera intensa desandar.
Jong-boo carrega algumas características do pai bufão de O Hospedeiro (2006), o filme de monstro de Bong Joon-ho. A interpretação comovente de Kwak Do-won evita que o personagem perca a simpatia do público a cada decisão errada. Pelo contrário, permanecemos com ele até o fim desse terror dos mais cruéis: aquele tipo que alimenta o espectador com esperança só para puxar o tapete de debaixo de seus pés nos últimos minutos.
15 de outubro
Vestido Maldito (In Fabric, 2018)
(Disponível na HBOMax e na Prime Video)
Vestido dos infernos assombra três pessoas que caem na besteira de usá-lo na Inglaterra da década de 1980. Horror cômico-erótico-fashion-necrocapitalista, ou algo assim, do mais interessante cineasta britânico em atividade. Peter Strickland já brincou com elementos do filme de assassinato italiano (o giallo) em Berberian Sound Studio (2012), com o pornô softcore europeu das décadas de 70 e 80 em O Duque de Burgundy (2014), e fez um curta de terror (“Cobblers’ Lot”) para a antologia Mentes Malignas (2018). Agora, ele pega tudo isso e bate no liquidificador.
Resultou numa sátira perversa do conformismo consumista no mundo moderno. Não por acaso, o filme se passa na era cabelo armado da primeira-ministra Margaret Thatcher. Se o vestido assombrado pode matar os personagens, a vida sufocante que eles levavam até então é também um tipo de morte em vida. Portanto, o vestido aparece como um metafórico — e em duas cenas, literal — fantasma na máquina.
A reconstituição de época, incluindo um hipnótico comercial de TV, é tão meticulosa quanto artificial. Completando o delírio, a música eletrônica do trio alemão Cavern of Anti-Matter. Mesmo as interpretações têm um efeito desorientador. Se por um lado, Marianne Jean-Baptiste e Hayley Squires humanizam duas das usuárias do vestido num registro naturalista, por outro, o destaque fica com Fatma Mohamed, atriz-fetiche do diretor, como uma vendedora de loja de departamentos que fala num estilo meio Michel Temer meio biscoito da sorte chinês.
Talvez o melhor seja você se deixar levar pelo filme, sem tentar antecipar (em vão) aonde ele vai dar. De qualquer forma, no fundo do peito dessa travessura de Strickland bate um bom e velho coração de filme de fantasma.
16 de outubro
O Fantasma do Convento (El Fantasma del Convento, 1934)
(Disponível na íntegra no You Tube)
Um casal e seu amigo se perdem durante uma caminhada no campo. Temendo a noite fria, refugiam-se num convento que supunham abandonado. São recebidos por uma anacrônica ordem de monges que fizeram voto de silêncio. O resto da noite contém mais surpresas e uma provação.
Clássico absoluto, recentemente restaurado com apoio da George Lucas Family Foundation. O cineasta Fernando de Fuentes é figura incontornável do cinema mexicano. Participou do primeiro filme sonoro, criou um gênero tipicamente nacional (a comedia ranchera, que se passa sempre na roça) e, com este filme, foi também o pioneiro do terror no país. Os diálogos têm aquele tique teatral do período, que também acomete o Drácula (1931) de Tod Browning. Porém, o filme de Fuentes leva vantagem, com sua câmera mais fluida experimentando ângulos mesmo inusitados, como um monge filmado de baixo para cima. Há também as cenas noturnas, um desafio para qualquer diretor até hoje. Fuentes converte a ação no convento num encantador trabalho de chiaroscuro que vence as limitações técnicas.
No mesmo ano, Juan Bustillo Oro, co-roteirista com Fuentes, aproveitaria elementos da trama para o drama expressionista Dois Monges. A narrativa de O Fantasma do Convento é simples, como aquelas que contamos à noite no campo, em volta de uma fogueira, toda construção para o “grande susto” no clímax — e o susto aqui ainda convence. Espectadores acostumados à linguagem moderna do terror podem se incomodar com esse estilo antigo. Por tudo isso, recomenda-se que O Fantasma do Convento, como uma peça rara e delicada num museu, seja visto sob condições ideais de temperatura e pressão: tarde da noite, no escuro. À luz do dia, a ilusão se quebra.
17 de outubro
Não Fale o Mal (Speak No Evil, 2022)
Em férias num resort na Itália, casal dinamarquês de classe média alta, aquela espécie sem anticorpos contra o mundo lá fora, faz amizade com casal de holandeses e seu filho com problemas de fala. Meses depois, recebem um convite para passarem uma temporada com os novos amigos. Ansioso por escapar da sua vida monótona, Bjørn (Morten Burian) convence a esposa (Sidsel Siem Koch) e partem às cegas com sua filhinha para o interior da Holanda. Como o leitor já adivinhou, não tem como dar certo.
O roteiro do diretor Christian Tafdrup e de seu irmão, Mads, vai tecendo sua teia com paciência. O grosso do filme é uma narrativa de microagressões se acumulando, como em Sob o Domínio do Medo (1971), de Sam Peckinpah. Quando todas as peças do quebra-cabeça estão dispostas, já é tarde demais para escapar do clímax mais angustiante desde O Silêncio do Lago (1988), de George Sluizer.
Se a passividade dos personagens indignar o espectador mais impaciente, é sempre bom lembrar como os males da vida moderna produzem quilos de autoengano. E olhe onde chegamos. Há uma multidão de Bjørns por aí.
18 de outubro
As Boas Maneiras (2017)
(Disponível na Netflix e na Reserva Imovision)
Ana (Marjorie Estiano), uma mulher cheia de segredos, contrata Clara (Isabél Zuaa) como enfermeira e babá para o filho que vai nascer. A gravidez provoca estranhos efeitos em Ana, que vão muito além de desejo por feijão gelado com catchup. Essa situação vai fortalecer o laço entre as duas e fazer surgir em Clara um sentimento materno pelo estranho filho da patroa.
O lobisomem já foi usado como comentário da sociedade do espetáculo (Grito de Horror), crítica ao tratamento de povos indígenas (Lobos), viagra do Jack Nicholson (Lobo), metáfora do poder feminino (Possuída), e fantasia adolescente (saga Crepúsculo). Aqui, o animal folclórico simboliza uma sociedade profundamente patriarcal, da qual Clara e Ana não podem escapar. Ele não é o personagem principal da trama, mas as vidas das heroínas giram em torno dele. Complicando os conflitos históricos embutidos na história, Clara é negra.
A dupla Juliana Rojas e Marco Dutra construiu uma carreira fazendo terror (O Duplo, Quando Eu Era Vivo) ou usando elementos do gênero (Trabalhar Cansa, Sinfonia da Necrópole). Executam um filme todo seu, transbordando de invenção, a partir da tradição cinematográfica ocidental: contos de fada da Disney, céus pintados no estilo Hammer ou Roger Corman, e os monstros da Universal. As Boas Maneiras ganhou um merecido prêmio do júri no Festival de Locarno, e dezenas de outros mundo afora. Além de tudo, o filme é tenso e divertido, sensual e surpreendente, como as interpretações de Estiano e Zuaa.
19 de outubro
Hausu (House, 1977)
Sete adolescentes vão passar as férias escolares na casa da tia (Yoko Minamida) de uma delas no campo. O que nenhuma delas sabe é que a tia é um fantasma possuindo a casa, que está faminta.
Você nunca assistiu a nada assim na vida, e há grandes chances de que jamais verá algo parecido.
A justaposição da linguagem rósea e alegre dos comerciais de televisão — de onde viera o diretor Nobuhiko Obayashi — e de um tema musical sacarinado com o massacre perpetrado pela casa só torna tudo ainda mais desconcertante. Some-se a isso uma profusão de trucagens, desde a animação até o chroma key mais elementar do tipo Os Trapalhões na Guerra dos Planetas, e eis o filme mais original dessa lista, 88 minutos de horror como pop art. Foi campeão de bilheteria.
Os estúdios Toho haviam encomendado a Obayashi a história para um filme que fosse a resposta japonesa ao Tubarão (1975) de Steven Spielberg (sério). O diretor pediu sugestões à sua filha de 12 anos, que minou seus próprios medos. Obayashi e Chiho Katsura, seu co-roteirista, amarraram tudo numa história de casa mal-assombrada anárquica com um subtexto perturbador: o fantasma da bomba atômica na história da tia que perdera seu amado na Segunda Guerra Mundial. Obayashi nasceu em Hiroshima, e a absurda violência da bomba se espelha no rancor assassino da casa. É uma ruptura com o o horror do cinema clássico japonês e sua figura folclórica do fantasma justiceiro (como em Kwaidan). House vai desaguar no sadismo puro e simples dos espíritos no J-horror (como em Ring: O Chamado) décadas depois.
Enquanto amadores fazem filmes de Amityville, Obayashi fez House.
20 de outubro
A Rena Branca (Valkoinen peura, 1952)
(Disponível na Mubi)
Nos vales gelados da Lapônia, Pirita (Mirjami Kuosmanen) procura feiticeiro em busca de poção do amor para fazer seu marido se interessar mais por ela. Mas ela tem sangue de bruxa, o feitiço dá errado, e ela passa a se transformar numa rena branca vampira.
Baseado em lendas populares do povo sámi, essa joia finlandesa enfeitiça mais que assusta. Se a Finlândia fosse um estado brasileiro, certamente teria sido feito por Humberto Mauro tamanha a atenção do finlandês Erik Blomberg ao lugar e seus costumes. A bela música foi composta por um dos maiores compositores do país, Einar Englund. Ele inicia e encerra o filme com vozes femininas, sereias ajudando a compor a atmosfera hipnótica.
A estrela Kuosmanen colaborou com Blomberg, seu marido, no roteiro, assim como em outras parcerias da dupla, que privilegiam os personagens femininos. Mais até do que aquele outro filme famoso de uma mulher que vira fera por causa do desejo, Sangue de Pantera (1942), aqui o filme é quase todo contado do ponto-de-vista da anti-heroína.
Vencedor de um prêmio especial em Cannes, A Rena Branca foi recentemente restaurado. Agora, suas imagens em preto-e-branco — mais branco que preto, fazendo deste o filme mais luminoso da lista — podem ser devidamente admiradas de novo. Sem sangue ou sustos, elas podem ficar na memória por dias.
21 de outubro
Luz (2018)
Numa noite na década de 80, uma motorista de táxi chilena, Luz Carrara (Luana Velis, melhor atriz internacional no Festival de Cinema Fantástico de Porto Alegre), entra numa delegacia de polícia alemã repetindo frases blasfemas e desconexas em espanhol. Enquanto isso, um psicólogo forense (Jan Bluthardt) é assediado num bar por uma mulher com uma estranha história para contar sobre uma certa Luz, aluna de uma escola católica no Chile. Aliás, lucifer é “aquele que traz a luz” em latim.
Terror minimalista sobre possessão demoníaca que tira o máximo das atuações e dos poucos cenários. Os recursos teatrais são justificados pela estrutura do roteiro, que transforma a história de Luz num quebra-cabeça a ser montado — inclusive pelo próprio demônio — trazendo frescura a esse subgênero.
Tomadas longas, visual limpo e lúgubre, música eletrônica funcionando como um coro grego. Com Luz, Tilman Singer realiza uma espécie de cruzamento entre Michael Mann e John Carpenter, simulando o visual retrô até nos arranhões e sujeiras falsos que pipocam nas imagens filmadas em 16 milímetros. E no lugar de um final que amarre todas as pontas, espere um que abra portas — do inferno.
22 de outubro
Sala Verde (Green Room, 2015)
(Disponível na Claro TV)
A banda de punk rock The Ain’t Rights, precisando muito de grana, aceita tocar num bar de neonazistas no meio do mato do Oregon. Não esperavam testemunhar um assassinato no camarim — a sala verde do título — ao fim do show. Mas o dono do estabelecimento, Darcy (Patrick Stewart), está chegando para resolver o problema. De preferência, com facões e cachorros, para não deixar marcas de balas quando a polícia aparecer. E aquela sala embaixo do camarim deve permanecer escondida a todo custo.
Pela sinopse acima, pode parecer que este filme está no gênero errado. Basta trocá-la por “Jovens passam a noite numa casa perdida no meio das montanhas fugindo de espíritos malignos que querem eliminá-los um a um” e você vai entender. A única diferença é que os tais espíritos são neonazistas bem reais, comandados por um Stewart com frieza de gelar os ossos.
O ponto de partida de Sala Verde são as experiências de juventude do diretor Jeremy Saulnier como membro de uma banda itinerante, reproduzidas no início do filme. Ele aproveitou o sucesso do suspense Ruína Azul (2013) para conseguir dirigir essa história sangrenta e claustrofóbica com ótima fotografia de Sean Porter, privilegiando o ocre e, claro, o verde. Abra uma cerveja, engula um ansiolítico, ou tome os dois juntos porque a noite vai ser longa.
23 de outubro
O Enigma do Horizonte (Event Horizon, 1997)
(Disponível na Prime Video)
Numa missão que prometia revolucionar as viagens espaciais, a nave Event Horizon (horizonte de eventos) usou um novo propulsor para viajar anos-luz no espaço por meio de um portal transdimensional. Dada como perdida, ela reaparece na órbita de Netuno transmitindo uma única mensagem. A tripulação da Lewis & Clark é enviada para entrar na nave e descobrir o que aconteceu.
Horizonte de eventos é o ponto limítrofe ao redor de um buraco negro a partir do qual nada pode escapar, nem mesmo a luz, e as leis da física passam a não valer da mesma forma. Enigma do Horizonte também funciona numa fronteira entre duas realidades. A nave de alta tecnologia também tem uma arquitetura gótica inspirada na Catedral de Notre Dame. A trilha sonora funde o páthos neoclássico de Michael Kamen com o futurismo do grupo Orbital. A primeira metade da história se concentra mais em clima e sustos ao modo antigo enquanto a segunda explode em sangue e vísceras. O propulsor transdimensional, um triunfo de design, sugere ao mesmo tempo um complexo mecanismo racional e um barroco instrumento de tortura.
Por causa dos atrasos de Titanic, o estúdio Paramount ordenou que o filme fosse adiantado e picotado para ser lançado no verão. Por um lado, essa arquetípica casa assombrada no espaço, do diretor Paul W.S. Anderson, perdeu minutos de uma (literal) orgia de sangue padrão Bosch; por outro, perdeu gordura e ganhou agilidade. Vinte e cinco anos depois, ainda impressiona pelo que é e pelo que poderia ter sido.
24 de outubro
O Despertar da Besta (1970)
(Disponível no Belas Artes À la Carte)
Psiquiatra faz estudo com LSD em voluntários para provar que o mal não está nas drogas mas no ser humano. Críticos atacam sua teoria e ele pede ajuda a José Mojica Marins para defendê-lo. Por quê? Porque foi Zé do Caixão em pessoa quem assombrou os voluntários durante o experimento.
Mojica fundou o terror brasileiro na marra. Aparentemente, com O Despertar da Besta, também foi o criador do subgênero terror metalinguístico no cinema mundial. O fio condutor é o longo debate em que o psiquiatra e seus críticos ilustram suas posições com histórias escabrosas de sexo, drogas, blasfêmia, e todo tipo de perversão. Nada diferente dos sermões apavorantes de “pânico moral e enxofre” que certos religiosos e vendilhões do templo pregam há décadas. (Como diz Mojica no filme, ele ajuda o cinema brasileiro levando “ao público aquilo que o público quer ver.”) Depois da introdução, Zé do Caixão vai aparecer no terço final em cores, junto com as depravadas alucinações lisérgicas. Não é por acaso que o título alternativo do filme era Ritual dos Sádicos.
Misto de exploitation, terror, crônica de bastidores, e manifesto cinematográfico, O Despertar da Besta foi sumariamente vetado pelo regime militar, que tentou destruir todas as cópias e negativos — como se vê, em vão. Como nos filmes anteriores, o impacto maior vem do arsenal sonoro de gritos e efeitos. Porém, o estilo “primitivista” (palavra do Glauber Rocha) não é para todos, especialmente para quem tem medo de agulhas. Participações especiais de Ítala Nandi (“Eu sou virgeeeeeeemmmm!!!!”), Carlos Reichenbach, e Adoniran Barbosa. Sim, Adoniran Barbosa.
25 de outubro
Raw (Grave, 2016)
Justine (Garance Marillier) vai se juntar à irmã (Ella Rumpf) numa escola de veterinária no interior da Bélgica. Durante a infernal semana de trote de calouros, ela é obrigada a comer rim de coelho. Mas Justine é vegetariana, e o gosto de carne desencadeia estranhas reações no seu organismo junto com uma fome cada vez maior.
Antes de ganhar a Palma de Ouro por Titane (2021), Julia Ducournau levou prêmio na Quinzena dos Realizadores por esse retrato da canibal quando jovem. Não via Raw como horror mas sim uma tragicomédia adolescente com elementos de terror corporal. Mesmo assim, sua estreia em longas de cinema tem os dois pés no gênero.
Ducournau humaniza seu “monstro” a tal ponto que transforma o filme num drama de doença. A personagem principal, uma pessoa comum, tenta negar ou tratar sua condição da melhor forma possível. George A. Romero já fizera isso com o vampiro em Martin (1976). Sebastián Hofmann levou essa perspectiva a extremos com o zumbi de Halley (2013). Os sintomas de Justine remetem à anorexia.
Sim, Raw é um filme de terror – espelho distorcido de tormentos bem reais. Tem sustos, sim. E carne crua. E um final deliciosamente macabro. Coma com moderação.
26 de outubro
O Novo Pesadelo: O Retorno de Freddy Krueger (Wes Craven’s New Nightmare, 1994)
(Disponível na HBO Max)
Heather Langenkamp, a atriz que interpretou a heroína de A Hora do Pesadelo (1984), está recebendo telefonemas ameaçadores de um fã. Ao mesmo tempo, começa a ter pesadelos com Freddy Krueger, o bicho-papão do filme. Logo, descobre que Wes Craven, o criador de Krueger, também. O diretor planeja usar seus pesadelos como base para seu novo filme — e impedir que Krueger passe para o mundo real.
Dez anos e inúmeras sequências depois do Pesadelo original, Craven retorna à sua criatura com um terror meta — o segundo desta lista. Afinal, se os sonhos do filme interferiam na vida de quem os sonhava, por que as obras de uma fábrica de sonhos não podem perturbar quem as produz? Vários aspectos da vida de Langenkamp, como o episódio do stalker, foram usados no roteiro com a permissão da atriz. Produtores e outros atores do primeiro filme, como Robert “Freddy” Englund, interpretam a si mesmos. Um terremoto ocorreu de fato em Los Angeles durante as filmagens. Borrando os limites mais ainda, não há créditos de abertura. E, pelos créditos de encerramento, Freddy Krueger fez o papel de Freddy Krueger.
O primeiro Pesadelo pode ser o clássico icônico, mas O Novo Pesadelo é o mais inventivo da franquia, um dos melhores do gênero na década de 90. Chegou a ser indicado a melhor filme do ano no Independent Spirit Awards e deu a Craven o prêmio de roteiro no Fantasporto. Com tantos elementos para brincar, ele se dá ao luxo de só mostrar o vilão para valer já depois da metade da história. Encerrando sua participação na série, Craven tem coisas interessantes a dizer sobre histórias de terror e aqueles que as contam.
27 de outubro
A Chorona (La Llorona, 2019)
(Disponível na Looke)
Um general (Julio Díaz, que possui uma curiosa semelhança física com Ian McDiarmid, o Imperador Palpatine de Guerra nas Estrelas) é julgado por sua participação no genocídio do povo maya ixil durante a guerra civil na Guatemala da década de 80. Manifestantes exigem justiça do lado de fora dos portões de sua mansão. Cercado com sua família em casa, começa a ouvir o insistente choro de uma mulher à noite. Quando a maioria dos serviçais resolve ir embora, chega uma nova empregada (María Mercedes Coroy).
O multipremiado drama fantasmagórico de Jayro Bustamante coloca o horror terreno e o sobrenatural lado a lado. O público brasileiro vai reconhecer alguns diálogos, especialmente quando a filha do general (Sabrina de la Hoz) tenta arrancar da mãe (a excelente Margarita Kenéfic) a verdade sobre o passado e recebe acusações de “comunismo”. Os escândalos do filme, pasmem, são bem familiares.
O sobrenatural vai se instalando bem lentamente, especialmente pela força da bela fotografia noturna de Nicolás Wong Díaz. A Chorona segue a tradição japonesa do fantasma vingador, aquele que vem corrigir uma injustiça. (É o mesmo caso do horror de época argentino Los que Vuelven, do mesmo ano.) Como que dando sua bênção ao filme, Rigoberta Menchú Tum, a vencedora do Nobel da Paz, aparece numa ponta na sequência do tribunal, observando o testemunho dolorido de uma sobrevivente do massacre no passado.
Este não é um filme para assustar, mas para assombrar.
28 de outubro
O Gato Preto (The Black Cat, 1934)
Diversão com Bela e Boris!
Casal de americanos de férias na Hungria sofre acidente no caminho para Visegrado e precisa passar a noite na companhia de um estranho médico (Bela Lugosi) e um arquiteto mais estranho ainda (Boris Karloff).
Dos filmes do ciclo de terror da Universal na década de 30, este é o mais estiloso e macabro. O checo Ulmer — ele mais tarde ainda ajudaria a definir o filme noir com Curva do Destino (1945) — sabe onde posicionar uma câmera. Ele co-escreveu o argumento, que ecoa o trauma da Primeira Guerra Mundial, embora no fundo seja uma variação de Zaroff, O Caçador de Vidas (1932). Há satanismo, necrofilia, gente sangrando pela boca, e escalpelamento, um pouco demais para a época. Foi campeão de bilheteria do estúdio em 1934.
Outra novidade é a casa do arquiteto Poelzig, uma mistura de modernismo anguloso e brutalismo — idealizada pelo próprio diretor com o diretor de arte Charles D. Hall — que vai contra todo clichê de casa mal-assombrada. E, claro, os intérpretes de Drácula e do monstro de Frankenstein estão juntos pela primeira vez na tela. O roteiro se aproveita da fama dos astros para adiar ao máximo a revelação de quem é o mocinho e quem é o vilão. Quanto menos você souber, melhor.
Em tempo: há um gato preto no filme. Porém, O Gato Preto é um dos primeiros exemplares de uma longa tradição do cinema até hoje: adaptações de Edgar Allan Poe cuja única ligação com Poe é o título da história.
29 de outubro
Quando Chega a Escuridão (Near Dark, 1987)
(Disponível na Globoplay/Telecine e na Mubi)
À noite numa cidadezinha do interior do Oklahoma, Caleb (Adrian Pasdar) se envolve com uma forasteira chamada Mae (Jenny Wright). O que o jovem caubói não sabe é que ela faz parte de um grupo de vampiros itinerante — assim como ele, quando o sol nascer.
O primeiro longa solo de Kathryn Bigelow estreou no mesmo ano de outro filme sobre um rapaz atraído para um bando de bebedores de sangue imortais. Enquanto Joel Schumacher fez de Os Garotos Perdidos uma aventura de terror adolescente, a diretora de Guerra ao Terror (2008) criou um western de horror moderno, num registro mais naturalista. Nada de olhos vermelhos, caninos afiados ou metamorfose em morcegos. Porém, a música atmosférica é do Tangerine Dream, afinal ninguém é de ferro.
Pegando carona nos livros de Anne Rice, o cinema da década de 80 trouxe o vampiro para o esquema do sonho americano da era Reagan: mais jovem, mais belo e glamouroso. Ele podia até viver à margem, mas até ser empalado ou queimado pelo sol, era um modelo na própria sociedade em que caçava. Quando Chega a Escuridão joga essa imagem pela janela. Quando não está à procura de alimento nos cafundós, a colônia de Jesse (Lance Henriksen) vive em carros roubados e motéis de beira de estrada.
Nessa existência precária e parasítica, só resta o niilismo. Por isso, Bill Paxton rouba o filme como Severen, o membro do bando que brinca cruelmente com a comida antes de abatê-la. “Odeio quando eles não se barbeiam”, diz antes de matar mais um.
30 de outubro
Plano-Sequência dos Mortos (Kamera o tomeru na!, 2017)
Equipe de TV, liderada por um diretor de temperamento nível David O. Russell, filma uma história de zumbis numa estação de tratamento de água abandonada. Porém, segundo uma lenda urbana, o lugar foi palco de experimentos do exército japonês com mortos-vivos durante a Segunda Guerra Mundial. Logo, a equipe descobre que a lenda urbana não é lenda urbana.
O célebre plano-sequência de 37 minutos — sem cortes mesmo — do título levou 2 dias para dar certo. E ele é só o começo do que pode ser considerado A Noite Americana dos filmes de terror. Ao mesmo tempo em que faz uma declaração de amor ao cinema, o diretor Shin’ichiro Ueda compõe um vibrante e criativo filme de zumbi de baixo orçamento, produzido por uma escola de artes dramáticas japonesa e parcialmente chupado de uma peça de 2011, O Fantasma na Caixa! (Os produtores resolveram a controvérsia incluindo o dramaturgo Ryuichi Wada nos créditos.)
Apesar da cara de patinho feio, Plano-Sequência dos Mortos vem de várias famílias de prestígio no gênero. Horror barato como Halloween, cinema de guerrilha como Tetsuo: O Homem de Ferro (Shinya Tsukamoto, 1989), comédia debochada como O Corvo (Roger Corman, 1963), e sangrenta como A Volta dos Mortos-Vivos (Dan O’Bannon, 1985). Daqueles filmes que são quase impossíveis de odiar, levanta o humor de qualquer defunto.
31 de outubro
Desafio do Além (The Haunting, 1963)
O Dr. Markway (Richard Johnson) arregimenta um grupo de voluntários para estudar os supostos eventos sobrenaturais na Hill House, um casarão centenário da Nova Inglaterra. Há Luke (Russ Tamblyn), o cético sobrinho da dona da casa; Theodora (Claire Bloom), com aparentes poderes extrassensoriais; e Eleanor (Julie Harris), uma criatura frágil e nervosa que mal se conhece. E há Hill House, mas o que quer que ande por ali, anda sozinho.
Filmes de casa mal-assombrada se dividem em antes e depois de Desafio do Além: antes, careciam da intensidade necessária; depois, todos devem alguma coisa a ele. Não é à toa que Ti West (Pearl) e Martin Scorsese são fãs. Robert Amor Sublime Amor-A Noviça Rebelde-O Enigma de Andrômeda Wise pediu ao roteirista Nelson Gidding que cortasse o número de personagens e restringisse a ação o máximo possível à casa assombrada. Mesmo assim, é a adaptação mais fiel ao romance de Shirley Jackson, The Haunting of Hill House. A versão de 1999 fulanizou a história com efeitos computadorizados abundantes. E a minissérie de Mike Flanagan de 2018 só tem em comum com o livro o título e os nomes de personagens.
Esta versão de 1963 é um exercício em claustrofobia e ambiguidade, valorizado pela fotografia em preto-e-branco de alto contraste de Davis Boulton e pelo desenho de produção de Elliot Scott. Os sustos, na maioria das vezes, são apenas sugeridos por movimentos de câmera e efeitos sonoros — o resto fica por conta do espectador. Essa sutileza inclui os personagens. Theodora é uma lésbica muito bem resolvida apesar de toda a censura da época. E a Eleanor de Harris, a complexa mocinha do filme, é um poço de inseguranças com quem não é fácil simpatizar. Desafio do Além homenageia o mentor de Wise, o produtor Val Lewton (Sangue de Pantera), para quem o que a escuridão sugere é muito mais assustador do que o que os olhos veem.