Esse tal de fascismo

Maurício Sellmann Oliveira
6 min readSep 4, 2020

--

Frase apropriada por Benito Mussolini reproduzida por Jair Bolsonaro em postagem no Facebook em 01/06/2020.

É ou não é fascista? A definição do governo do presidente Jair Bolsonaro é objeto de um dos dois debates — o outro é sobre cancelamento — a monopolizar a seção de ideias e cultura na mídia impressa brasileira. Se a intenção dos acadêmicos envolvidos for a de delinear o momento atual para entendê-lo com mais clareza, embarcam em projeto de longo prazo. Se desejam influenciar o uso da palavra “fascismo” pela sociedade, boa sorte. Tudo o que posso dizer é que raramente a língua funciona por comitê.

Na Folha de S. Paulo, a discussão já avança lá se vão uns três anos. Num dos capítulos mais recentes, membros do movimento político Livres incomodaram-se com artigo de grupo de professores da USP, do início de junho. Neste caso, o objeto da discordância é menos o fascismo em si e mais a associação feita entre fascismo e liberalismo. O problema começa daí: os dois grupos explicam liberalismos diferentes. Os da USP escrevem sobre “ultraliberalismo econômico” enquanto os do Livres discorrem sobre um liberalismo que, para além do livre mercado, pauta-se pelo “respeito a instituições, afirmação de direitos, cultivo de valores associados à liberdade”.

Falam uns sobre as cabeças dos outros. O liberalismo do grupo da USP é o entendido no Brasil contemporâneo, estritamente econômico — com o prefixo “ultra” reforçando a ideia de “fundamentalismo de mercado” no jargão norte-americano. Nisso, afinam-se com João Amoêdo, o fundador do Partido Novo, que se considera “liberal na economia” mas “conservador nos costumes”. Já o grupo do Livres refere-se ao sistema moral, político e econômico que toma forma com os filósofos iluministas — o que o brasileiro chamaria de “social-democracia” ou até “esquerda” quando o foco é social. Porém, lá pelas tantas, concordam com o grupo da USP (e com Raymundo Faoro, Roberto Schwarz..) ao descrever o Ministro da Economia, Paulo Guedes, como “historicamente vinculado ao pensamento liberal no Brasil”. Dificilmente vai se encaixar no conceito liberal anglo-saxão alguém que foi trabalhar na Universidade do Chile, administrada por generais em plena ditadura Pinochet, e afirma, em entrevista à revista Piauí, que “sabia que tinha uma ditadura, mas para mim isso era irrelevante do ponto de vista intelectual”.

Quando entram no assunto “fascismo”, os times se invertem: o grupo da USP explica que o bolsonarismo “ressoa discursos e estratégias de uma velha tradição fascista local”, o integralismo que surgiu na década de 1930; o Livres se detém sobre os regimes “que existiam na Europa durante o período entre as duas guerras mundiais”. Nessa toada, vão se estranhar até o fim dos tempos — o que parece ser o objetivo mesmo.

Debruçando-se há décadas sobre a terminologia, estudiosos do fascismo operam num contínuo que vai da definição estrita, como a do Livres, à genérica, como a do grupo da USP. Como ocorre com “populismo”, outro conceito controverso, há argumentos para diversos gostos. Em 1925, o próprio Benito Mussolini, ciente das suas limitações e ambições geopolíticas, disse que o fascismo “não é produto de exportação”. Além disso, a colcha de retalhos ideológica torna o governo Bolsonaro “muito cacofônico” para se encaixar claramente nas fronteiras do fascismo. Por outro lado, o presidente compartilha uma característica com o líder integralista Plínio Salgado: ambos têm predileção pelo culto personalista embutido no título de “chefe supremo”. Salgado foi o “Chefe Supremo e insubstituível” da Ação Integralista Brasileira, na descrição da revista Anauê! de janeiro de 1935. Bolsonaro invoca a expressão quando precisa afirmar potência, como na reunião ministerial de 22 de abril ou no discurso pós-demissão de Sérgio Moro dois dias depois.

São filigranas fascinantes, porém sua permanência nos jornais confunde. No dia 09 de agosto, em sua coluna na Folha, o cientista político Marcus André Melo entrou na lide defendendo que “a redução da expressão fascismo a autoritarismo é pobre analiticamente”. Relembra, como ilustração, que nem o Estado Novo de Getúlio Vargas “era totalitário”. Mas há historiador hoje em dia que diga o contrário? Os seus leitores deixarão de empregar o termo de forma a-histórica?

Palavras se transformam. A língua, escreve Sergio Rodrigues “nunca para de criar novas realidades que muitas vezes as autoridades da área, nada pontuais, só vão assimilar com uma ou duas gerações de atraso”. Vocábulos são apropriados por uns, arrancados das mãos destes por outros, e ressignificados de acordo com visões políticas próprias. É nesse campo de batalha que a língua se faz.

Hannah Arendt lembrou que “revolução” era somente o ciclo dos corpos celestes para franceses e ingleses até que os últimos associaram-na à restauração da velha monarquia na segunda metade do século XVII. (Na verdade, a palavra já implicava grandes mudanças políticas desde ao menos o séc. XV, mas foi aí que se popularizou.) O sentido de reformulação radical, com ênfase no ineditismo, veio depois. As ondas históricas que levam a palavra para um lado podem sempre arremessá-la de volta ao outro, como numa revolução celeste. No Brasil, toda vez que as Forças Armadas (leia-se Exército) se arvoram a instaurar o seu poder moderador, fazem uma revolução. Como já chegaram ao poder tanto, a próxima conotará uma volta a tudo que aí sempre esteve.

As palavras se moldam de baixo para cima, do vulgo para os salões, mas especialmente da força de uma coletividade. Ou de várias. A ascensão de “fascista” como sinônimo de autoritário, independente de nuances, tornou-se fenômeno mundial. No Brasil, está tão plantada no dicionário de quem se encontra mais à esquerda como, à extrema direita, “comunista”, passou a significar qualquer inimigo. Nas últimas eleições na Itália, berço do fascismo raiz, multidões entoaram a canção Bella Ciao, um hino antifascista, em protesto contra Matteo Salvini e sua Lega, um partido de extrema-direita em vez de fascista. Nos EUA, os trabalhadores dos Correios sugeriram um caráter fascista da administração de Donald Trump em cartazes de resistência aos cortes de viés político que vêm sofrendo.

Vocábulos são símbolos políticos vivos como quaisquer outros. A comunidade gay mastigou o ofensivo “bicha” para torná-lo expressão orgulhosa. O verde-amarelo foi do ufanismo ditatorial de 1970 aos caras-pintadas contra o presidente Fernando Collor de Mello, e finalmente aos opositores da presidente Dilma Rousseff, movimentos de direita e saudosos daquele 1970. Atualmente, progressistas tentam reavê-lo com ações nas redes e especialmente nas ruas, não num artigo para a Folha.

Formas de expressão novas “convivem, num primeiro momento, com formas preexistentes, passando em seguida a concorrer com as mesmas, podendo, eventualmente, suplantá-las”, pondera o linguista (da USP) Aldo Bizzocchi. Dessa maneira, o “fascismo” do brasileiro — e do italiano, e do norte-americano. Quanto aos debatedores dos periódicos, talvez seja melhor utilizar a palavra “autoritarismo”.

No romance Esaú e Jacó (1904), de Machado de Assis, um dono de confeitaria no Rio de Janeiro se angustia sobre qual nome colocar na tabuleta do estabelecimento. A República acaba de ser inaugurada, e a placa encomendada seria “Confeitaria do Império”. Uma “Confeitaria da República” também não seria de bom tom — vai que é moda passageira. Seu amigo, o Conselheiro Aires, vem com a solução: “Confeitaria do Governo”. “Tanto serve para um regime como para outro”, ponderou.

Siga-se o Conselheiro Aires. Padronizem-se os manuais de redação para que o articulista agrade ao paladar mais centrista. Não correrá o risco de ser identificado com o militante de esquerda ou com o deixa-disso que alardeia serem fascismo e comunismo as duas faces da mesma moeda. (Os últimos terão problemas com a História: em depoimentos ao cientista político Hélgio Trindade na década de 1970, a maioria dos integralistas entrevistados disseram ter entrado no movimento para lutar contra o comunismo e também o liberalismo.) Como efeito dessa praticidade, tão inerente à evolução da língua, o espaço reservado à forma fica dedicado ao conteúdo.

Daí, pode-se discutir com mais profundidade como conter uma administração que acelera o ritmo de devastação da Floresta Amazônica, que não tem plano claro para reativar a economia a não ser aumentar a tributação das classes média e baixa, que tira dinheiro da educação de um lado para pôr na defesa de outro, que persegue inimigos políticos com o aparato repressivo do Estado, que estimula a insubordinação e a violência policiais, que se omite de proteger a saúde da população em geral e dos povos indígenas em particular, que abriga militantes extremistas, que espalha notícias falsas com reincidência, que regularmente viola a Constituição Federal com impunidade, que tem ligações com investigados por crimes em todo o espectro da gravidade.

Porque isso pode não ser fascismo, mas democracia liberal também não é.

--

--

Maurício Sellmann Oliveira
Maurício Sellmann Oliveira

Written by Maurício Sellmann Oliveira

PhD in Latin American Cultural Studies at the University of Manchester. Só por curiosidade. Também encontrado no Almanaque Semanal (Substack).

No responses yet