Proibição de voos: para inglês ver

Maurício Sellmann Oliveira
7 min readDec 9, 2021

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Foto: Habib M’henni (Wikimedia Commons: CC BY-SA 3.0)

Em 24 de novembro, cientistas da África do Sul anunciaram a descoberta de uma nova variante do SARS-CoV-2, logo batizada com a letra grega ômicron pela Organização Mundial de Saúde. A notícia era causa de preocupação, pois a nova variante continha cerca de 50 mutações com o potencial, ainda não confirmado, de tornar o vírus mais transmissível e mais resistente. Temendo uma repetição de 2020, líderes de vários países agiram rapidamente: proibiram voos originários da África do Sul, de Botsuana, e outros países do continente africano onde foram registrados casos do ômicron. Em outras palavras, grande parte do mundo teve uma reação excelente como marketing político, mas duvidosa como política de saúde pública.

O Brasil seguiu a maioria dos países ocidentais. Uma portaria da Casa Civil, publicada no dia 27 de novembro e lastreada em pareceres da Anvisa, proibiu em caráter temporário, voos “que tenham origem ou passagem pela República da África do Sul, República do Botsuana, Reino de Essuatíni, Reino do Lesoto, República da Namíbia e República do Zimbábue nos últimos quatorze dias”. O documento abria exceções ao “viajante brasileiro”, que deveria apenas “permanecer em quarentena, por quatorze dias, na cidade do seu destino final”. Ainda com lastro em recomendações da Anvisa, a lista de proibições cresceu para incluir Angola, Moçambique, Malaui e Zâmbia.

No dia 28 de novembro, no podcast Café da Manhã da Folha, quando lhe perguntaram sobre a validade das restrições de voos, a dra. Natália Pasternak, uma das mais respeitadas comunicadoras científicas no país, saiu-se com uma resposta diplomática: “Eu acho que a cautela é necessária até que a gente faça a investigação. É um pouco exagerado, de repente pode parecer um pouco radical, mas a gente já viu como essas variantes, quando elas realmente são mais transmissíveis, como elas se espalham rápido.” Avisou ainda que se deve “tomar cuidado é pra não gerar um problema de preconceito contra pessoas que vêm dessas regiões”, mas não explicou como isso é possível ao mesmo tempo em que a proibição de voos se restringe a esses países.

A mísera cobertura vacinal nos países do continente africano e a cautela na espera de novas informações estão por trás dessas medidas “radicais”. No dia 26 de novembro, Anthony Fauci, a autoridade no combate a doenças infecciosas nos EUA, disse que era necessário “estar preparado para fazer tudo no sentido de proteger” o público doméstico, mas também era preciso “ter certeza de haver uma base para essas medidas”.

No Brasil, a Anvisa justifica essas medidas na Nota Técnica 203, afirmando seguir a OMS: “essa nova variante parece ter maior transmissibilidade e provavelmente está ligada ao aumento contínuo de infecções por SARS-CoV-2 nos referidos países, cuja cobertura vacinal ainda encontra-se baixa.” A única referência no documento é um link para um vídeo com declarações de dois epidemiologistas da OMS, Maria van Kerkhove e Mike Ryan. A dra. Van Kerkhove somente explica que “não sabemos muito ainda”, porém a quantidade de mutações da variante inspira atenção. Mais adiante, o dr. Ryan elogia a equipe sul-africana responsável pela descoberta e alerta contra “respostas impulsivas aqui, especialmente em relação à África do Sul” porque, como já se viu no passado, “assim que se fala sobre qualquer tipo de variação, todo mundo já vai fechando fronteiras e restringindo viagens, você sabe, é muito importante que permaneçamos abertos e concentrados em resolver o problema, e não fiquemos a punir países que executam um trabalho científico extraordinário.”

A medida e a sua justificativa parecem inócuos quando o governo brasileiro já exige de todos os viajantes estrangeiros entrando no Brasil “um exame RT-PCR não detectável (negativo), realizado nas últimas 72h antes do embarque, ou exame negativo do tipo antígeno, realizado em até 24h antes do embarque”. A Anvisa também recomenda a exigência do passaporte vacinal de todos os viajantes, mas tanto o Presidente da República quanto seu ministro da Saúde resistem com base no mantra “melhor perder a vida do que a liberdade”. Ignorando por alguns instantes o fato de que essa frase foi proferida pela autoridade máxima da saúde no país, a proibição de voos não constitui exatamente perda da liberdade?

Quase dois anos após o início da pandemia de covid-19, quais são as evidências de que a restrição de circulação aérea funciona? Uma revisão de 23 estudos publicada no Journal of Travel Medicine em agosto encontrou consequências socioeconômicas negativas, mas pouca ou nenhuma referência a impactos na saúde pública. Uma revisão anterior da Cochrane Library em março sobre 62 estudos, a maioria de modelagem matemática, achou “evidência muito pouco conclusiva” de redução de contágio. Anders Tegnell, o polêmico epidemiologista-chefe da Suécia, observou que é “basicamente impossível monitorar todo o fluxo aéreo”.

Em março de 2020, atendendo recomendação da Anvisa, o governo brasileiro também suspendera entrada de “passageiros estrangeiros vindos da China, de países-membros da União Europeia, da Islândia, da Noruega, da Suíça, do Reino Unido e da Irlanda do Norte, da Austrália, do Japão, da Malásia e da Coreia do Sul.” Então, como agora, a medida era um queijo suíço que excluía cidadãos brasileiros além de deixar de fora os Estados Unidos, que enfrentava aumento exponencial de casos. Não se apresentaram ainda quaisquer evidências de que essas medidas tenham atrasado ou reduzido o impacto do pico da primeira onda de contágio, em julho de 2020. Além disso, em março de 2020, o Ministério da Saúde já declarava que havia transmissão comunitária “em todo o território nacional”. Como ilustração de que a furada vai se repetir, os primeiros casos de ômicron registrados aqui são de dois missionários brasileiros, aparentemente não-vacinados, que foram à África do Sul espalhar a Palavra do Senhor e retornaram para espalhar o vírus.

Hoje, também, o foco nos países africanos chegou tarde: em 30 de novembro, um dia antes da Anvisa recomendar a inclusão de mais 4 países africanos na lista de suspensão de voos, autoridades holandesas anunciaram que haviam encontrado o ômicron em amostras colhidas nos dias 19 e 23 de novembro.

Em seu programa de entrevistas, o apresentador Stephen Colbert ironizou o bloqueio ao continente africano pelo governo dos EUA: “Até agora, o vírus só foi encontrado nos países sul-africanos da Áustria, Bélgica, Canadá, República Checa, Dinamarca, França, Alemanha, Hong Kong, Israel, Itália, Holanda, Portugal, Espanha, Suécia, e Reino Unido.” É sempre bom lembrar que um terço dos cidadãos da União Europeia não estão imunizados contra a covid-19. Não consta da portaria da Casa Civil a interrupção de voos desses países ao Brasil.

Países onde a suspensão de voos parece ter funcionado possuíam particularidades ausentes na maior parte do mundo, inclusive o Brasil. Austrália, Japão e Nova Zelândia eram cercados de água por todos os lados. De qualquer forma, implantaram a medida em conjunto com políticas radicais de restrição de movimentos, quarentena, testagem em massa, e uso de máscaras — ações que o Brasil, por exemplo, não adotou de forma coordenada ou se recusou a adotar.

Se o objetivo da suspensão de voos é ganhar tempo, permanece a pergunta; ganhar tempo para quê? Embora não haja comprovação da eficácia de restrição de voos, já ficou provado que uma política agressiva de testagem em massa, rastreamento e monitoramento, vacinação, e sequenciamento genético do vírus funcionam. De todas essas medidas, somente a vacinação prossegue a todo vapor, apesar dos obstáculos impostos inicialmente pelo governo federal. Pouco houve rastreamento de casos. Sete meses depois de deixar quase 7 milhões de kits de teste encalhados em Guarulhos, o Ministério da Saúde anunciou programa nacional com a previsão de fazer 25 milhões de testes por mês. Dois meses depois, já não se falava mais nisso. No início de 2020, as equipes das extraordinárias Ester Sabino e Jaqueline Goes conseguiram sequenciar o genoma do novo coronavírus 48 horas após a confirmação do primeiro caso de covid-19 no Brasil. Em 30 de novembro deste ano, o Instituto Adolfo Lutz confirmou os primeiros casos de ômicron no país — dos missionários brasileiros. Essas ilhas de excelência, porém, são poucas frente ao volume de casos e à ausência de recursos, alocados por deputados e senadores para a compra confidencial de tratores superfaturados. Segundo levantamento feito pelo jornal O Estado de S. Paulo, a média de sequenciamento por casos no país é de 0,34%, menor que a do Chile (0,92%), do Equador (0,64%)… e da África do Sul (0,81%). Há um plano de monitoramento sistemático de todos os passageiros provenientes de locais de risco no exterior? Ou de tornar testes rápidos de covid-19 mais acessíveis à maioria da população? O Ministro da Saúde passou a se comunicar regularmente com os secretários de saúde estaduais? O leitor pode adivinhar as respostas por si próprio.

Em sua entrevista ao podcast da Folha, a própria dra. Pasternak comentou que o Brasil precisa “de um sistema de vigilância melhor porque a gente não tem. Então, se essa variante, por exemplo, já estiver no Brasil, ninguém sabe. E pode ser que ela esteja.”

A restrição de voos seletiva não deve causar grande impacto no enfrentamento da pandemia de covid-19 no Brasil. No entanto, pode resultar em consequências negativas para os países banidos. Já diminuiu consideravelmente a quantidade de equipamentos e suprimentos necessários à análise do ômicron na África do Sul. Túlio de Oliveira, um dos cientistas responsáveis pela descoberta da nova variante em Durban, alertou para o risco de se esgotar o estoque de reagentes para o sequenciamento do vírus. Além de afetar a rede global de troca de informações científicas, as restrições de circulação desencorajam esses países a compartilhar suas descobertas, pois isso pode significar, como neste momento, limitação de movimento de seus cidadãos e meios de transporte. Especialmente em países do sul global, isto acarreta enorme prejuízo econômico após dois anos de enormes prejuízos econômicos. É um círculo de tiros no pé, que minam todos os objetivos de se ter puxado o gatilho em primeiro lugar.

Uma das teorias sobre a origem da expressão “para inglês ver”, de acordo com o filólogo João Ribeiro, remete às pressões da Inglaterra para que o Brasil combatesse o tráfico de escravos. O Império respondia colocando naus no litoral para caçar navios negreiros. A tal caça, como os testes em massa do dr. Queiroga, não saía do papel. Mas, como as restrições a voos de países africanos, fazia bom verniz cosmético. Infelizmente, o ômicron não é inglês. Nem sul-africano.

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Maurício Sellmann Oliveira
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Written by Maurício Sellmann Oliveira

PhD in Latin American Cultural Studies at the University of Manchester. Só por curiosidade. Também encontrado no Almanaque Semanal (Substack).

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